Ser professora na pandemia: sobrecargas em meio ao caos.
A pandemia de COVID 19, perdura por mais de 1 ano, e embora não suportemos mais falar sobre ela, nesse momento é inevitável, principalmente, para que possamos refletir um pouco a respeito de algumas questões gerais do que é ser “professora”, no Brasil, durante o terrível momento histórico que estamos atravessando.
Antes de desenvolver de fato essa análise, precisaremos fazer alguns apontamentos acerca da escrita desse texto. As linhas que vocês lerão a partir de agora partem dos pressupostos, reflexões, questionamentos, aprendizados, vivências e dores de uma mulher cisgênera, branca, feminista interseccional, professora de esquerda, paulistana e periférica, ou seja, assim como todos os discursos são ideológicos, esse também será. Sendo pautado pelos marcadores sociais honestamente sinalizados acima.
Considerações extremamente relevantes
Outro ponto importante a ser desmistificado para o entendimento dessa escrita é a incômoda e recorrente fala do “dom” de ser professora e do trabalhar “por amor”. Quase nunca escutamos essas colocações quando estamos falando em qualquer outra profissão, entretanto quando lançamos o nosso olhar para a educação e, sobretudo, para as educadoras, elas ganham falaciosos ares de elogio, todavia, não o são e é imprescindível entender essas falas como mais uma das opressões que nos atingem diretamente.
O magistério, como muitas outras profissões, requer horas de estudo para que possamos desenvolvê-lo, isto é, aperfeiçoar metodologias e didáticas que possam contribuir de forma efetiva com o aprendizado de nossos alunos, em outras palavras, estudamos de forma ininterrupta em prol de técnicas para realizar o nosso ofício da melhor maneira possível e isso não é nenhum dom, e sim: trabalho duro!
Da mesma forma, trabalhamos para receber os nossos salários e, também, lutamos para melhorar as nossas condições salariais, como qualquer outro trabalhador que entende a urgência da luta de classes dentro do sistema capitalista, ou seja, não trabalhamos “por amor” e isso não tira a importância de nosso papel na sociedade e tampouco o valor que damos à educação. Assim, somente gostaríamos de reiterar que comentários aparentemente inocentes como os supracitados apenas servem para minimizar a nossa dedicação e a nossa competência profissional.
Professora na pandemia: Ferida latente
Após essas importantes considerações, vamos de fato ao assunto o qual pretendemos debater aqui. Há mais de doze meses, nossas rotinas mudaram e o ensino presencial foi aos poucos sendo substituído de forma infelizmente necessária, nesse momento, pelo ensino à distância. Por conta disso, tivemos que reaprender a ser professoras, nos desgastando mais e mais a cada dia, e quase sempre acreditamos que apesar de tudo, não estávamos fazendo o suficiente.
Nesse sentido, em meio ao caos de estarmos vivendo uma situação sem precedentes de forma extremamente atribulada, solitária e incerta, estávamos, também, sendo medidas o tempo todo por uma “régua” empunhada por um sistema falho que deposita todos os problemas de uma sociedade imensuravelmente desigual na escola e leva a população a acreditar que de nós virá a solução, cerceando de forma simbólica as nossas liberdades individuais. Afinal de contas, nada mais normal do quer ter medo diante do desconhecido, principalmente, quando esse desconhecido é um vírus letal, não é mesmo? Porém, não nos permitem nem mesmo o medo.
E esse processo, no mínimo violento, foi alimentado de forma perversa pela imprensa, que muitas vezes apresenta alguma tentativa meio que desesperada de uma educadora, para atingir os seus alunos, como um exemplo a ser seguido. Eximindo assim o poder público de suas obrigações e exigindo cada vez mais de nós, peças menores no tabuleiro social.
O resultado dessas violências foram o aumento do estresse, crises de ansiedade/pânico, estima por si mesmas, caindo a níveis baixíssimos, sobrecarga de trabalho, queda vertiginosa em relação a qualidade de vida, desentendimentos com as outras pessoas com as quais dividimos a casa, diminuição da conexão com cônjuges, filhos e outros familiares, falta de esperança/perspectivas em relação ao futuro, culpa, entre outras adversidades e tudo isso gerou profundas feridas em nossa saúde emocional, feridas essas que demorarão muito a cicatrizar.
Lógico que entendemos o privilégio de poder exercer a nossa função por meio do home office e até mesmo o direito de greve, em situações extremas. Assim como, entendemos que estão sim, havendo sérios prejuízos pedagógicos e emocionais aos nossos alunos nesse momento. Prejuízos emocionais que se estendem a todas nós, também. Todavia, nenhum prejuízo pode ser maior do que a vida do indivíduo e, portanto, a máxima “ano letivo se recupera, vidas não”, é uma verdade inegável.
Outra verdade incontestável é que a educação é essencial. Sim, concordamos plenamente com essa fala e consideramos que ela deveria ter sido vociferada de forma repetitiva muito antes da pandemia, muito antes de que o estar em sala de aula representasse também uma ameaça as nossas vidas, as vidas de nossos alunos e de seus e de nossos familiares. Por conta disso, professores fazem greve não apenas por salários ou pela própria vida, como está acontecendo hoje na cidade de São Paulo, mas fazem greve pedindo melhores condições de trabalho, lutam para que haja sim, merenda de qualidade, acesso à tecnologia e até segurança nas escolas e em seu entorno, isto é, professores não são “vagabundos” que estão “recebendo sem trabalhar”, muito pelo contrário. Praticamente dobraram a sua jornada durante o período de ensino remoto, muitas vezes de forma altruísta, atendendo os seus alunos: fora do seu horário de trabalho e até mesmo aos fins de semana, por conta das dificuldades deles em conseguir acesso à internet. E mesmo no atual ensino hibrido, em que precisamos nos revezar entre a sala de aula e as aulas virtuais, as demandas não diminuíram, muito pelo contrário, só fazem aumentar. Lembrando que todas as decisões que envolvem a educação são tomadas de cima para baixo, ou seja, a nossa opinião e as nossas experiências não foram levadas em consideração nenhuma vez.
Vale lembrar que quando falamos em “professoras”, o nível de exigências se torna muito maior, uma vez que muitas de nós também somos mães e precisamos auxiliar os nossos próprios filhos no ensino à distância e assim como a educação dos filhos, o trabalho doméstico e o cuidado com pais e avós são na maioria das vezes incutidos compulsoriamente a nós, mulheres. Desse modo, somos obrigadas a seguir em frente como se fossemos super-heroínas do mundo Marvel e não seres humanos desgovernados, no sentido mais lato da palavra. Afinal, a máquina não pode parar!
Libertando-se de culpas ilusórias
Consequentemente, vimos a emancipação feminina sendo resignificada de forma esdrúxula, como mais uma maneira de nos oprimir, e nos levando a acreditar que precisamos “dar conta de tudo” e isso é uma mentira cruel. Ninguém é obrigada a dar conta de nada e não somos fracas, ou menos competentes por estar cansadas, pedir ajuda, dizer não, ou exigir que outras pessoas exerçam efetivamente os seus papéis sejam profissionais ou familiares. Mais de um ano depois do início dessa triste situação que estamos atravessando a passos lentos, sem guias e tendo na vacina uma luz ainda tímida e distante, ainda nos culpamos por não ter feito algo a mais quando fizemos o máximo que podíamos naquele momento, por não conseguirmos conscientizar os nossos alunos e a nossa comunidade acerca dos perigos do Covid-19, por não mobilizarmos os nossos colegas na construção de uma greve sanitária legitima e urgente, pois nos foi posto abusivamente que tínhamos que fazer tudo isso, já que reivindicamos direitos iguais aos dos homens. Cobranças essas impostas por uma sociedade que ainda não legitimou as nossas escolhas e que nos coloca em uma eterna posição subserviente alimentando nossas dúvidas e conflitos acerca de nós mesmas, ou seja, depois de tantas lutas ainda precisamos nos vencer diariamente para entender que acima de tudo somos humanas e, como tal, vamos falhar e está tudo bem, falhar!
Assim sendo, se faz urgente livrar-se de cada padrão que nos foi imposto seja ele o da: “mulher guerreira”, o da “melhor mãe do mundo”, o da “rainha do lar”, “da professora abnegada”, ou mesmo o da “profissional bem-sucedida”, uma vez que todos eles nos aprisionam em prol de um modelo inatingível e desumano e assim termino esta reflexão, repetindo Nina Simone, “Temos a permissão de ser exatamente quem somos”, nem mais e nem menos e isso inclui sermos humanas, falhas, sentirmos medo, não precisarmos dar conta de tudo e nem nos perdoar por nada disso, porque sabemos de antemão que essa culpa não é nossa.
Cris Moreira – Coletivo Feminista Nísia Floresta
Leia também do Coletivo Nísia Floresta:
A Criminalização do Aborto e a Vulnerabilidade da Mulher
10 Comentários
Excelente texto!
Até qdo renunciaremos uma luta em prol de um legado machista?
Até qdo aceitaremos que dá p fazer mais um pouquinho?
Onde está nosso ponto final?
Onde está nosso basta?
Onde estão nossos princípios?
Exatamente, Eliane!!! Precisamos fazer esses questionamentos, sempre!
Sempre maravilhosa e certeira! Excelente e necessária reflexão.
Com certeza!!! Impactante!
Faço das suas minhas palavras!
Obrigada <3
Que bom que ressoou contigo, Michele!!!
Amei o texto 🙂 professora Cris
Dá pra entender essa cobrança e essa sobrecarga que esta os professores principalmente aqueles que moram na periféria. E você ver que o estado não tem nenhum suporte para eles , parece que tudo que temos que “nos vira nos 30”,e isso e triste.
Com certeza Tais!! Estamos à própria sorte!
Excelente texto.
Descreve exatamente o que estou vivendo como mulher , mãe e professora. Válida reflexão.
Deixe um Comentário