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A inspiração da Deusa Mandí

A inspiração da Deusa Mandí

A inspiração da Deusa Mandí que queria ser LIVRE

Ilustração de capa por Clarice Leal

Nós mulheres indígenas não somos uma homogeneidade. Possuímos diferentes maneiras de compreender e estar no mundo segundo fomos ensinadas por nossas mais velhas.

Márcia Kambeba

Trago para nosso círculo, a força ancestral de Mandí (em língua Tupi). É uma história única de tradição oral ancestral que provém da força de um ser muito sagrado que mudou a realidade das mulheres Tupi.

Aconteceu há muito tempo, há mais de quinze mil anos, quando o colonizador ainda não havia chegado aqui nessas terras.  Em uma casinha de sapê, morava um casal de anciões sem filhos.

Nessa época, o povo Tupi não seguia os calendários do homem branco de hoje.  O tempo era medido em Luas e os anos, em taquaras (bambu). O tempo de vida de uma taquara é de trinta anos, então, ter uma taquara significa ter 30 anos.

Esse casal de anciãos já tinha mais de três taquaras de vida e nunca conseguiram ter nenhum filho. A comunidade vivia em harmonia e todos se ajudavam, mas cada clã (família) precisava colher seus alimentos. Eles também plantavam, mas não esse plantar de hoje, como a agricultura, era o plantar de jogar as sementes e as cascas que não fossem utilizadas em lugares onde pudessem descansar e renovar o solo para no futuro crescer novamente num ciclo novo de vida.

Esses anciões já estavam cansados, nessa época eles viviam muito tristes porque já não conseguiam fazer as coisas como na juventude e não conseguiam alimentos com facilidade na região. Essa tristeza aumentou quando começou a faltar alimento para todos e eles pensavam que a única maneira seria ter alguém os ajudando, que pudesse subir nas árvores e colher os frutos mais fresquinhos.

Numa tarde, eles voltavam para casa chorando pela dificuldade para conseguir encontrar alimentos para sua sobrevivência, olharam para o céu claro, mesmo já anoitecendo. Foram andando e observando Djatsy, que estava grande e cheia, então, fizeram um pedido para que a Lua os levasse embora para mundo sem mal e seguiram para casa onde foram dormir. Quando dormiram sonharam e, no sonho, viram um brilho muito forte como quando a luz da lua entra pela janela. Era o espírito de Djatsy que veio até eles e os cumprimentou dizendo:

Pyntū Porã! Eis que ouvi o clamor e a voz de vocês. Vim trazer o que há de melhor no céu, é uma estrela brilhante, Djatsy Tatá’í. Um dos seres mais incríveis do universo, o ser mais feliz de todo o céu! A deixarei com vocês e deverão cuidar bem dela. ” Djatsy foi embora e junto todo brilho se foi.

Quando acordaram o marido viu a esposa e contou sobre seu sonho com Djatsy. A esposa ficou surpresa e confirmou que também tivera o mesmo sonho. Ficaram felizes e contaram para todos da aldeia que iriam ser pais, mas ninguém, ninguém acreditou, todos os achavam velhos demais para serem pais.

A barriga da mulher começou a crescer e conforme ia crescendo as pessoas olhavam e comentavam de sua velhice, enquanto ela se sentia muito bem, feliz e animada com vontade de fazer tantas coisas.

Quando chegou o tempo de nascer, chamaram a parteira. O tempo parou, todos os seres da floresta ficaram em silêncio, de repente deu um brilho imenso que iluminou tudo num grande clarão, a criança nasceu e ouviu-se um forte grito do bebê nascendo. Então, o pai chegou para olhar a criança achando que seria o filho tão esperado e viu a menina. Ficou desesperado, ainda mais porque não teria a esperada ajuda e não sabia como iriam sobreviver e alimentar mais uma pessoa, pois já não estavam conseguindo se alimentar naqueles tempos difíceis.

À linda menina, de pele muito branca e de cabelos claríssimos como o luar, deram o nome de Mandí. Acredita-se que ela foi a primeira criança albina que nasceu nessas terras.

Todos os aldeões iam visitar a criança nascida e ficavam espantados com aquela criança de aparência tão diferente de todo povo Tupi. O tempo foi passando e Mandí não se importava com os olhares e comentários, ela era muito feliz, sorridente e se comunicava com as plantas e animais mesmo antes de aprender a falar, por isso, estava sempre cercada por diversos animais.

Mandí queria plantar e naquela época as mulheres não plantavam.  Essa era uma tarefa apenas dos homens, as mulheres participavam do preparo dos alimentos. Mandí gostava de ser livre e de estar em harmonia com os seres da floresta.

Um dia ela encontrou uma semente de milho verdadeiro e plantou, sem que ninguém visse. Logo cresceu um milharal muito bonito. Quando ela começou a distribuir as espigas, todos os aldeões e grandes líderes viram sua felicidade e por ter um milharal tão belo a puniram. Mandí foi trancada em uma casa com outras mulheres que estavam ali, onde ficou por quatro ou cinco anos, mas ela ainda tinha esperança de resolver o problema da fome de seu povo.

Com o passar do tempo ela foi se entristecendo até que um dia seu pai a chamou para contar que arranjara um casamento. Ela então ficou ainda mais triste, pensando que casar seria uma prisão pois não poderia fazer o que mais gostava que era estar na floresta e ser livre.

Mandí saiu correndo pela floresta, chorando tanto, foi quando o espírito de Djatsy apareceu diante dela e quis saber de sua tristeza, por ser o ser mais feliz do universo, porque estaria triste assim. Djatsy avisou que a levaria de volta para o céu. Mandí chorou e implorou para que pudesse ajudar seu povo e insistiu em fazer um único pedido antes da partida.

Djatsy ouviu-a e depois levou de volta seu espírito. O tempo parou como quando Mandí, nasceu e todos os seres da floresta ficaram contemplando-a. Quando os aldeões a encontraram, ela já estava morta. Então, todos os aldeões sentiram uma tristeza imensa ao se lembrar do sorriso e do jeito de ser da pequena Mandí. Logo, todos começaram a chorar e tiveram remorso pelo que fizeram com ela e levaram seu corpo para os seus pais, que receberam a notícia com muita dor.

Quando eles já estavam dormindo foram acordados pelo espírito de Mandi e ficaram surpresos achando que ela havia voltado, mas ela disse que apenas veio se despedir e os abraçou e agradeceu por tudo. Antes de ir embora, prometeu a sua mãe que nunca mais ela e seu povo passaria fome e pediu a seus pais, que ela fosse enterrada na Ori Gwaçu, uma casa de rituais sagrada, do povoado, também chamada de Grande Oka.

No mesmo momento em que ela foi enterrada, começaram o luto, o choro do povo e de Tupã que, muito triste com o ocorrido, iniciou então, uma chuva forte com grandes trovoadas. Era o choro de Tupã que era apaixonado por Djatsy Tata’í. Todos sentiram um aperto no coração era um dia de luta também para os grandes espíritos de toda existência.

Quando a chuva parou, a Lua desceu até o lugar onde estavam reunidos e disse a todos: “Vocês não souberam amar e ouvir a estrela Mandí, o espírito mais feliz do universo que veio trazer muitos ensinamentos ao povo Tupi, mas agora é o espírito mais triste do pluriverso nesta conexão, ouçam a mensagem que ela trouxe. ”

Quando perceberam, acharam muito estranho pois no lugar onde enterraram estava remexido e o corpo não estava mais ali. No lugar, tinha uma rama e quando puxaram a rama, ela se partiu. E para surpresa de todos, a rama tinha a cor da pele de Mandí

Eis que Djatsy deu um grande grito, dizendo a todos: “Mandí! Assim como ela ama seu povo, prometeu nunca mais deixá-los passar fome e se sacrificou para que mudanças acontecessem aqui. Mandi mandou essa raiz para alimentar seu povo. ” Então, o povo ficou tão grato e emocionado que Mandí se tornou uma grande deusa para o povo Tupi que nunca mais passou fome. Mandí deixou de presente a técnica de plantio da mandioca para as mulheres Tupi. Se tornando, então, a grande inspiração para as mulheres transformando a realidade por treze mil anos. Ou até a ocasião que Anchieta chegou e modificou toda cultura Tupi.

Texto de Patricia Cardoso Gomes dos Santos

Coletivo Feminista Nísia Floresta

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