A Bruxa e o Feminismo
É fato conhecido que muitas vertentes feministas, assumem a figura da bruxa como uma de suas representações. Não é difícil corrermos nossa timeline e nos depararmos com a frase “Somos as netas das bruxas que vocês não queimaram”, frases como esta, são bastante conhecidas, difundidas e até estilizadas em camisetas entre feministas, mas como e quando essa associação começou?
Podemos responder essa questão numa perspectiva histórica. Analisando as transformações históricas pelas quais a imagem da bruxa passou ao longo dos anos.
Fenômeno da Caça às Bruxas
Por séculos a ideia de bruxaria (apesar de Harry Potter) é associada a algo maligno, sendo a mulher a grande imagem da bruxa. Isso está relacionado ao fenômeno histórico conhecido como caça às bruxas ocorrida principalmente na Europa e nas Américas (período colonial) entre os séculos XV e XVII. Durante esse período houve uma massiva campanha judicial realizada pela igreja (católica e protestante) instigado pela classe dominante e permitido pelo Estado, contra a população pobre e seu estilo de vida, e coube às mulheres serem taxadas de bruxas. Esse fenômeno, estudado pelo viés feminista, identificou que esse processo ajudou a construir no imaginário social o estereótipo da bruxa – velha, decrépita, feia, malvada – associado ao demônio, maligno, perigoso.
Parte desse imaginário se deve a um livro com grande circulação na Europa, nos séculos em que a caça às bruxas estava em alta, chamado de Malleus Maleficarum (traduzido para o português como “O Martelo das Feiticeiras”). Escrito por homens da igreja (dois monges beneditinos, Kramer e Sprenger), funcionou como manual para “identificar bruxas”. Apesar dos absurdos contidos no livro, na prática ele reforçou a perseguição às mulheres, especialmente as curandeiras e parteiras, facilmente associadas a mentalidade sobrenatural da época. A obra também enfatizou que mulheres, por sua “natureza”, eram mais propícias a serem bruxas e separou as boas (religiosas, santas, virgens) das más (promíscuas e malignas) além de ser o instrumento jurídico que legalizou os interrogatórios (torturas) dos tribunais da inquisição.
Quando analisamos o contexto histórico da caças às bruxas, a transição da Baixa Idade Média para o Período Moderno, percebemos que o imaginário da bruxa má, nem sempre existiu, ele foi construído, com especificidades nos países em que houve essa perseguição, sendo importante pontuar que fez parte de um amplo processo de transformações na Europa e Américas. Essas mudanças de ordem econômica, social, cultural, religiosa e científica causaram rupturas em modos de vida de populações pobres, rurais, com fortes vínculos comunitários e de outra relação com a natureza, ou seja, representavam empecilhos para as mudanças que ocorriam e foram de extrema violência para as mulheres.
Nas Américas o processo foi mais terrível, pois a colonização, associado a essas mudanças e praticada por uma mentalidade europeia de superioridade cultural provocaram verdadeiros epistemicídios e etnocídios (destruição de saberes e destruição dos vínculos com o território) dos povos originários/indígenas. Pouco foi divulgado, em comparação com a Europa, sobre a perseguição às bruxas na Américas, em especial o Brasil, e caberia um outro texto sobre esse tema.
As mulheres julgadas como bruxas, eram parteiras, curandeiras, entendiam de plantas medicinais, procuradas e estimadas dentro de suas comunidades, possuíam poder social, já que eram a única possibilidade de atendimento médico dentro de uma comunidade pobre. Essas mulheres aprendiam e ensinavam o ofício umas com as outras, entre as gerações. Pelo tribunal da inquisição foram caçadas, presas, estranguladas, torturadas, sofriam surras violentas, decapitações de seios, estupros com objetos cortantes e por fim, eram queimadas em espaços públicos. Em alguns países, como Alemanha e França, usavam madeira verde nas fogueiras, para prorrogar o sofrimento dessas mulheres, na Itália e Espanha, as mulheres eram sempre queimadas vivas.
Essa imagem da bruxa maligna continua representado no cinema, literatura, e reforçados no imaginário coletivo, com poucas exceções. Hoje, podemos chamar essa “demonização” da mulher de misoginia, que é o ódio, desprezo e preconceito contra mulheres e meninas.
A Bruxa Feminista
A partir do momento que a questão do gênero foi introduzida em pesquisas acadêmicas entre as década de 1970 e 1980, um outro olhar foi lançado para os estudos sobre as bruxas, as fontes documentais desse período ( processos inquisitoriais, tratados) foram revisitadas à luz de novas perguntas, fomentando teorias feministas. Por outro lado, nessas décadas muitos movimentos feministas ocuparam as ruas com reivindicações diversas e nesse momento houve uma apropriação da bruxa do passado pelos movimentos. Se essa apropriação da figura histórica da bruxa foi espontânea ou fruto das teorias feministas, não cabe ser discutido neste breve ensaio.
Diante de tudo que sabemos sobre o período inquisidor, podemos afirmar que houve um verdadeiro assassinato do gênero feminino, por manifestar seus conhecimentos as mulheres foram perseguidas, torturadas e mortas, como isso poderia ficar de fora do feminismo?
O feminismo busca resgatar a bruxa do limbo histórico, quebrando os estereótipos que resistem, trazendo à tona esta mulher, que detinha o poder, que cuidava de sua comunidade, que possuía conhecimentos sobre as plantas e sobre seu corpo, que resistia ao domínio da igreja e que foi caçada, violentada e morta. Infelizmente a misoginia e o medo do poder da mulher permanecem e, ainda hoje, somos julgadas, perseguidas e condenadas socialmente, muitas vezes assassinadas, pelo único fato de sermos mulheres, será que não somos todas bruxas?
Júlia Amabile e Kamila Monteiro
Coletivo Feminista Nísia Floresta
Referências:
Calibã e a Bruxa. Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. Silvia Federeci. Tradução – Coletivo Sycorax.
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3 Comentários
Quanta potência e narrativas fortes.
Essas mulheres são maravilhosas!!!
Incrível!!
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