Close

A Criminalização do Aborto e a Vulnerabilidade da Mulher

A Criminalização do Aborto e a Vulnerabilidade da Mulher

A Criminalização do Aborto e a Vulnerabilidade da Mulher

Falar de aborto é sempre difícil, não é simples e muito menos confortável –   de falar e ouvir – mas é necessário, porque é um fato: falando ou não, legalizado ou na marginalidade, as mulheres abortam!

É importante entendermos que aborto é a interrupção da gravidez, podendo ser precoce, quando ocorre antes da 13.ª semana de gravidez, ou tardio, entre a 13.ª e a 22.ª semana. E que existem diferentes tipos de abortos: o espontâneo, o acidental e o induzido.

A Criminalização do Aborto

Em nosso país, um aborto induzido é considerado um crime contra a vida; tal regimento é disciplinado entre os artigos 124 e 128 do Código Penal desde o ano de 1984.O aborto induzido só é legal em casos específicos, como estupro, risco de morte da mãe e se o feto for anencefálico. Ainda assim, mesmo sendo considerado legal, nestes casos citados, há vários entraves para ele ocorrer de fato: falta de informações para quem possui o direito, falta de acolhimento pela parte médica, falta de estruturas em alguns estados e cidades, além do preconceito e julgamento pela sociedade. Mas isso não muda o fato de que as mulheres continuam abortando.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto 2016(1), estima-se que no Brasil aproximadamente 20% das mulheres de até 40 anos já abortou. Mas a questão é, por que a campanha pela legalização, ou melhor, pela descriminalização, se as mulheres abortam mesmo sendo ilegal?

 Respondemos esta pergunta quando fazemos outra, a seguir.

Quem são as mulheres que abortam?

Um estudo financiado pela FIOCRUZ (2), indica que são as adolescentes as maiores vítimas do abortamento, pois são as que mais morrem devido ao aborto, feito sem estrutura sanitária, de forma marginalizada, largada à própria sorte. Além disto, o estudo faz um alerta importantíssimo para o debate, quando analisamos o recorte racial, percebemos que as mulheres negras, pardas e indígenas – 13% a 25% – são as que mais efetuam o aborto em relação a brancas, cujo índice fica em torno de 9%.

Essas pesquisas, estudos e dados nos revelam que existe um perfil de mulheres que procuram o aborto e são vitimadas por esta legislação que as jogam na ilegalidade, e são as mais vulneráveis, pobres, negras, periféricas e muito jovens. Precisamos nos aprofundar mais neste perfil, mas acho que é necessário além de dados, tentarmos um exercício de empatia, nos colocar no lugar desta mulher que aborta na ilegalidade – isto é, se esta já não é a sua realidade. Convido vocês a abrirem o coração e a cabeça, para acompanharem este relato da Carolina (3):

Aconteceu num relacionamento que era recente e eu estava iniciando num trabalho que era também um início de estabilidade financeira, materialização de uma luta pessoal. O parceiro queria o filho, mas quando soube que eu tinha uma opinião contrária, não ofereceu nenhum suporte: estar ao lado, compreender, ajuda financeira, nada. Aliás, financeiramente ele não tinha condições de sustentar os gastos de uma criança, mas nem chegou a cogitar isso. Muito provavelmente eu me tornaria mais uma “pãe” brasileira caso resolvesse seguir em frente com a gestação.

Me vi sozinha com a situação e ao mesmo tempo não me senti à vontade para contar para ninguém. Vergonha, culpa, medo, tanta coisa junta! A internet foi onde consegui encontrar uma ONG que providenciava medicação, orientação e alertas de possíveis riscos para um aborto seguro, recomendada por grupos pró-aborto que existiam entre as comunidades do antigo Orkut. Por ser um envio internacional, a medicação demoraria para chegar, e durante esse período de espera eu seria ainda por um tempo uma mulher grávida: inchaço e sensibilidade, muito sono, alguns enjoos. E a angústia e ansiedade pela chegada – ou não – dos remédios enquanto o tempo passava (não poderia ultrapassar doze semanas de gravidez).

O procedimento foi realizado na casa de uma amiga, seguindo as orientações. Dor, cólicas, sangramento intenso e a cabeça que fica atordoada de medo; medo de não dar certo, medo da ilegalidade, medo de ser dona do seu próprio corpo.

Nunca me arrependi. Por outro lado, não posso dizer que sempre foi confortável conviver com esse fato. O então pai contou a outras pessoas sobre o aborto com o intuito de que eu fosse julgada (o relacionamento acabou ainda durante os debates sobre o que iríamos fazer). A médica que me atendeu após o procedimento fez um inquérito como se precisasse provar que o aborto do qual tratava tinha sido mesmo espontâneo, talvez com o intuito de fazer eu me sentir uma criminosa (precisei tomar medicação posterior, mas não tive complicações). Psicologicamente tratei desse tema na terapia, anos depois (e acho importante reconhecer que este é um privilégio que a imensa maioria das mulheres que passam pelo mesmo processo não tem acesso). Hoje estou em paz com a decisão. O discurso conservador que iguala a mulher que aborta a mulher que assassina tem o poder de se enraizar na gente, por mais informação que a gente tenha. Acolhimento, escuta, escolha, são essas as coisas que a mulher com uma gestação indesejada precisa. O julgamento e a criminalização já vem desde o mito de Eva, mas a gente sabe a que interesses essas ações servem, mesmo em 2021.”

Vulnerabilidade da Mulher

Carolina esteve numa situação que muitas outras mulheres já estiveram e que muitas outras estarão, a gravidez indesejada. As vozes que defendem a descriminalização do aborto, para que ele seja feito de forma segura e gratuita, fazem isso para dar uma chance de escolha segura para mulheres como a Carolina, e muito mais, para proteger muitas outras mulheres que não possuem a estrutura e os meios que lemos no relato, como vimos nos dados, as maiores vítimas de abortamento são mulheres pobres, sem acesso aos meios seguros para o procedimento.

Ninguém defende o aborto, esse é um erro de pensamento, ninguém quer passar por um trauma, como relatado, mas o que existe é uma defesa pela vida das mulheres, principalmente pelas vidas mais vulneráveis. Que diante de uma situação difícil, sem apoio, são tratadas como criminosas pelo Estado, por procurarem uma alternativa, que além dos efeitos físicos, deixa marcas emocionais. Já é fato que a proibição não impede que o aborto ocorra, então por que ainda relegar à insegurança, à criminalidade e à morte essas mulheres?

Para a Carolina e para todas as mulheres que passaram pelo aborto, deixo aqui minha solidariedade e minha luta, não desistiremos desta luta dentro do movimento feminista, lutaremos como nossas Hermanas argentinas para que todas nós tenhamos direito de decisão, e que seja uma decisão segura, gratuita e legal.

Para as Mulheres que estão passando por esta questão neste momento, deixo aqui duas indicações de grupos de apoio: Women Help Women é uma organização ativista sem fins lucrativos cujo trabalho é a promoção de acesso ao aborto seguro.

Women on Web, organização com o objetivo de compartilhar informações sobre o direito a acessar abortos seguros e sobre métodos contraceptivos.

Tenho um grito entalado na garganta.
um grito denso, volumoso
Um grito ardido, de veias saltadas
E hoje ele vai sair.
-O corpo é meu!

Jenyffer Nascimento, O Grito

Texto de Kamila Monteiro – Coletivo Feminista Nísia Floresta

(1) https://www.scielo.br/pdf/csc/v22n2/1413-8123-csc-22-02-0653.pdf

(2) https://www.scielo.br/pdf/csp/v36s1/1678-4464-csp-36-s1-e00188718.pdf

(3) Nome fictício, para preservar a relatante.

Leia também:

Só, bem acompanhada

A Bruxa e o Feminismo

6 Comentários

Deixe um Comentário

Deixe um Comentário

Seu endereço de email não será publicado. Campos marcados com asterisco (*) são obrigatórios