Close

Sobre livros, Mas não só

Sobre livros, Mas não só

Sobre livros, Mas não só

Dizer que um homem é heterossexual implica somente no fato de que ele mantém relações sexuais exclusivamente com o sexo oposto, ou seja, mulheres. Tudo ou quase tudo que diz respeito ao amor, a maioria dos homens heterossexuais reservam exclusivamente para outros homens. As pessoas que eles admiram, respeitam, adoram, reverenciam, a quem honram, imitam, idolatram e formam profundos vínculos, a quem estão dispostos a ensinar e com quem estão dispostos a aprender, e cujo respeito, admiração, reconhecimento, honra, reverência e amor eles desejam, essas são, esmagadoramente, outros homens. Nas suas relações com as mulheres, o que passa por respeito é bondade, generosidade ou paternalismo, o que passa por honra é a remoção do pedestal. Das mulheres querem devoção, serviço e sexo. A cultura heterossexual masculina é homo afetiva, ela cultiva o amor pelos homens

Marilyn Frye

A citação acima, da filósofa e teórica feminista estadunidense Marilyn Frye, vive retornando à minha vida, e desta última vez foi por conta de uma matéria do jornal inglês The Guardian, chamada “Porque tão poucos homens leem livros escritos por mulheres?”2. A própria autora do artigo se identifica como MA Sieghart, não Mary Ann Sieghart, seu nome completo, e justifica: “porque eu realmente quero que homens também leiam isto”. O mecanismo, nada contemporâneo, vem desde George Elliot, pseudônimo de Mary Ann Evans, romancista britânica nascida em 1819, e George Sand, pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, romancista francesa nascida em 1804, que se utilizaram do expediente do pseudônimo masculino, e com isso, persuadir homens a lerem suas obras. Exemplo anacrônico? Pense em JK Rowling, autora do best seller juvenil Harry Potter; E.L. James, autora do hit “Cinquenta tons de Cinza”.  O apagamento do gênero nas autoras contemporâneas é mais sutil, mas não deixa de ter a mesma raiz das primeiras autoras. Mais de um século depois. Donde a citação de Frye mais uma vez me veio à memória. 

Amandine Aurore Lucile Dupin (George Sand) e Mary Ann Evans (George Eliot): duas escritoras que utilizaram pseudônimos masculinos para serem levadas a sério pelo público masculino.

O que fica subjacente a essa decisão de escritoras omitirem seu gênero é que, para despertar a empatia de um homem a um determinado produto cultural (e não só, essa empatia serve-se a qualquer locus social), é preciso a princípio ser também um homem.  O parça. O brother. O mano com quem se divide a cerveja, o jogo de futebol, a amizade verdadeira – há amizade verdadeira entre um homem e uma mulher heterossexuais? Camila Rufato Duarte sabiamente escreve para o portal Catarinas no artigo “Homens amam outros homens”:

“Para homens, mulheres não servem para ser amigas. Muitos se casam e, mesmo tendo escolhido dividir a vida com aquela mulher, nem de perto a considera uma amiga. Quantos amigos homens cis e héteros você tem ou já teve? Desses, quantos te admiraram sem te desejar sexualmente?”

Camila Rufato Duarte

Se olharmos para tempos ainda mais remotos, na cultura grega clássica, as mulheres são seres secundários (ainda lutamos contra isso, é fato), equiparadas socialmente aos escravos. A efervescência intelectual do período era uma intelectualidade exercida, praticada e partilhada por, para e entre homens. Uma imensa broderagem, essa prática que, em 2021, significa a relação entre homens heterossexuais que curtem outros homens, mas não se autodenominam homossexuais, muitos com posicionamento de extrema direita e/ou parte do movimento masculinista, que defende a supremacia masculina dentre outros valores retrógrados ligados a gênero, como o “pensador” Jack Donovan.

Detalhe de ânfora ateniense datada de V a.C.

Da Antiguidade clássica ao século XXI, a mesma irmandade instintiva, ancestral, rede invisível que Frye resume magistralmente. Ler esta citação pela primeira vez, anos atrás, foi para mim uma imensa epifania. “A cultura heterossexual masculina é homoafetiva” – a partir daí muitas questões relacionadas que eu alimentava, sem resposta, foram tomando forma. 

Voltando à matéria instigadora deste artigo, que traz a cena literária como embasamento, é sobre este recorte que passo a falar, já que a acompanho e dela faço parte, apesar da transição para qualquer outro espaço social ser válida e plausível. O apagamento de diversas autoras brasileiras é uma marca da nossa história literária – Maria Firmina dos Reis, mulher, negra, nordestina, primeira romancista brasileira (lançou “Úrsula”, romance abolicionista em 1859), por exemplo, foi esquecida por décadas. Muitas outras escritoras tiveram o mesmo destino, talvez nem todas venham a ser redescobertas. Por outro lado, vem ocorrendo uma maior participação nestes espaços das ditas minorias (não gosto do termo já que se relaciona a uma maioria numérica; uso-o aqui porque é como se consolidou o termo utilizado para grupos sociais diminuídos em suas mais diversas esferas de participação, importância e valoração social). Porém, sinto que por ora, embora seja animador o cenário de ampliação da participação das mulheres nestes eventos, somos ainda uma certa “cota”. Bem creio que alguns homens a cargo de curadoria em cultura devem lá pensar na “necessidade” de chamar negros, indígenas, mulheres, representantes LGBTQIA+. Necessidade aqui vai entre aspas porque irônica. Porque muita vez me soa mais como um item de checklist para passar ileso pelo crivo do espírito da época, no qual mulheres, negros e indígenas e LGBTQUIA+ têm justamente reclamado seus espaços de participação na sociedade.

Formação inicial da Academia Brasileira de Letras, cujo Regimento Interno teve o artigo relacionado à elegibilidade alterado para “os membros efetivos serão eleitos, dentre os brasileiros, do sexo masculino”, após a tentativa de entrada de escritoras.

Porém: quanto da escolha por esses atores sociais em mesas de discussão, lançamentos, publicações, peças publicitárias etc. é impulsionado por uma consciência genuína de reparação e mudança de discurso, quanto é impulsionado por uma pressão do ter que fazer tais escolhas para obedecer a uma agenda social? Quantos homens, acaso não houvesse essa demanda, não permaneceriam lendo, escolhendo, elogiando, homenageando apenas seus pares? Ainda bem, também, que muito mais mulheres estão à frente dessas curadorias. Mas caminhamos um percurso que me parece por vezes ainda didático.

À parte o teor analítico entre o conceito de Frye e a literatura, o perigo real reside sobre a construção de uma violência institucional que considera, valoriza e protege pessoas que estão dentro dessa possibilidade única de existir: homem, heterossexual (e porque não acrescentar, branco). É a mulher enquanto anexo do existir, penduricalho sexual, como quem exibe um relógio ou um carro, um objeto, um status. A coisificação da mulher, porque o amor, esse sentimento máximo, só pode ser reservado a seus iguais. A mulher para o uso, para o abuso, para o silêncio. A narrativa do mundo, sendo deles, torna o mundo deles; a experiência humana reduzida a um ponto de vista único:

“Se os homens não lerem livros feitos por e sobre mulheres, eles não conseguirão entender nossa psique e nossa experiência de vida. Eles continuarão a ver o mundo através de lentes quase inteiramente masculinas, com a experiência masculina como padrão.”

Em que evoluíram os homens que só reforçam dia após dia o enunciado da filósofa Marilyn Frye?

É sobre livros, mas não só.

Michele Santos – Coletivo Feminista Nísia Floresta

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS:

  1. Frye, Marilyn. ”The Politics of reality: Essays in feminist Theory” – Marilyn Frye
  2. Sieghart, Mary Ann. “Why do so few men read books by women?” (“Porque tão poucos homens leem livros escritos por mulheres?”)  https://www.theguardian.com/books/2021/jul/09/why-do-so-few-men-read-books-by-women?s=08
  3. Duarte, Camila Rufato. “Homens amam outros homens: o olhar para a mulher é apenas sexual” https://catarinas.info/homens-amam-outros-homens-o-olhar-para-a-mulher-e-apenas-sexual/
  4. Machado, Rosana Pinheiro. “Pensador da extrema direita, Jack Donovan radicaliza o machismo” https://theintercept.com/2019/05/27/jack-donovan-machos-em-crise/

Bernardino, Danilo. “Mulheres úmidas e homens secos: representações de gênero no mundo grego antigo” https://www.cafehistoria.com.br/mulheres-umidas-homens-secos-genero-na-grecia-antiga/

Leia Também:

A inspiração da Deusa Mandí

A Criminalização do Aborto e a Vulnerabilidade da Mulher

Deixe um Comentário

Deixe um Comentário

Seu endereço de email não será publicado. Campos marcados com asterisco (*) são obrigatórios