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O Barba Azul nosso de cada Dia

O Barba Azul nosso de cada Dia

O Barba Azul nosso de cada Dia

A mulher precisa penetrar nas trevas, mas ao mesmo tempo não pode cair irreparavelmente numa armadilha, ser capturada ou morta. Seja no caminho de ida, seja no caminho de volta

Clarissa Pinkola Estés

Contam as histórias que Barba Azul era um mágico fracassado, um homem gigantesco, com uma enorme barba azul, e que possuía uma queda por mulheres.

Ele cortejava três irmãs ao mesmo tempo, as moças, no entanto, tinham pavor de sua estranha barba, e se escondiam dele. Ele fazia um esforço imenso para convencê-las de sua gentileza e cordialidade, e as convidou para um passeio, chegando em uma carruagem ricamente enfeitada, e as serviu com lindas histórias e um suntuoso banquete.

“Talvez ele não seja tão mal assim”, pensavam ingenuamente as irmãs, encantadas com o dia divertido que tiveram. Ainda assim, as irmãs mais velhas não conseguiam deixar de nutrir suspeitas e temores, jurando que não veriam o Barba-Azul novamente. A mais nova, entretanto, achou que ele poderia ser um homem encantador, e até sua barba parecia menos azul.

Quando o Barba-Azul pediu sua mão em casamento, ela aceitou, e logo mudaram para seu castelo no bosque. Um belo dia ele precisou viajar, e autorizou sua mulher a convidar suas irmãs, sua família para se banquetearem, e deixou com ela as chaves de todas suas despensas, cofres e demais portas do castelo, mas fez um alerta. Havia apenas uma pequena chave que ela não poderia usar de maneira alguma. A mulher concordou e Barba-Azul partiu.

Logo as irmãs vieram para visitá-la, curiosas para conhecer o castelo, e a jovem esposa logo apresentou todos os cômodos, com exceção de um, aquele que a chave misteriosa abria. Imediatamente as irmãs começaram a testar as chaves em todas as portas, divertindo-se a cada descoberta. Encontraram enormes despensas, cofres cheios de dinheiro, muitas riquezas, mas a pequena chave continuava lá, sem abrir nenhuma delas.

Finalmente encontraram uma pequena porta, meio escondida, e certamente era naquela que a chave serviria! Uma das irmãs a abriu sem pestanejar, e deparou-se com uma enorme escuridão. Uma vela foi acesa, e as três mulheres assustaram-se horrivelmente. No quarto havia uma enorme poça de sangue, com ossos e crânios empilhados por toda a parte. Fecharam a porta imediatamente com gritos assustados.

A esposa reparou que a chave agora estava manchada de sangue, e ao tentar limpá-la, percebeu que a mancha não saía de maneira alguma. Ela a escondeu em seu armário, e torceu para que o marido não descobrisse. Barba-Azul retornou ao castelo no dia seguinte, e perguntou à sua esposa com foram as coisas em sua ausência, e pediu suas chaves de volta.

Ao perceber que a pequena chave não estava ali, se revoltou com a esposa e ficou enfurecido! A segurou pelos cabelos, chamando-a de traidora por ter entrado no quarto secreto. Revirou a casa como um louco, e ao abrir o armário da esposa, encontrou roupas manchadas pelo sangue que vertia da chave. Barba-Azul vociferou, e empurrou a esposa pelo corredor, arrastando-a até a porta maldita. Os esqueletos que ali jaziam pertenciam às suas antigas esposas, e agora seria a vez desta mais jovem.

A jovem mulher estava apavorada, e pediu um tempo ao enfurecido Barba-azul. Correu pelas escadas, e foi em direção às muradas do castelo, chamando por suas irmãs. O Barba-Azul esbravejava, para que pudesse dar à mulher o mesmo destino das outras. A mulher gritava em desespero, chamando agora pelos irmãos. O Barba-Azul berrou novamente e começou a subir as escadas, ao mesmo tempo em que os irmãos da mulher entravam no castelo.

No momento em que Barba-Azul a alcançou, os irmãos o encurralaram, e ali, com suas espadas, golpearam, retalharam e mataram o terrível homem, deixando para os abutres o que havia sobrado dele.

(Adaptação do conto de Clarissa Pinkola Estés)

E o que essa história tem a nos ensinar?

A figura do Barba-Azul habita a vida de muitas mulheres. A vida real, infelizmente, mas também a vida psíquica.

Podemos identificá-lo nos altíssimos índices de violência contra a mulher. Maridos, companheiros, chefes, irmãos, pais… Muitas vezes mascarados por uma falsa gentileza, mas que, no entanto, se revelam cruéis predadores, abusadores e carcereiros.

Sua ação pode ser sutil, como cordas invisíveis que nos controlem como marionetes, sempre com a ameaça de irmos parar a qualquer erro, mortas e escondidas no quarto secreto do Barba-Azul.

No entanto, essa figura sinistra não se manifesta apenas no exterior. Ele habita a psique de todas nós, aguardando o momento de tomar posse de nossos instintos e silenciar a Mulher Selvagem que nos habita. É um inimigo ancestral e altamente destrutivo e deseja apenas uma coisa, superioridade. Ele se alimenta de nossa luz interior, querendo apagá-la a qualquer custo.

Quem de nós não reconhece algum momento da vida neste sombrio enredo?

Muitas de nós somos capturadas, mesmo que temporariamente, pelo Barba-Azul.  Pelo menos uma vez na vida, experienciamos uma ideia irresistível ou uma pessoa deslumbrante nos apanhando de surpresa na calada da noite…. Assumimos riscos com imprudência, tentando descobrir as coisas por conta própria, assim como a jovem esposa do conto. Mas tudo bem, todas nós começamos assim, ou nos arriscamos em situações que nos parecem encantar, a qualquer tempo de nossas vidas.

O papel das irmãs mais velhas é representar a intuição, que avisa para não confiar no Barba Azul. Mas seu efeito é hipnótico e mesmo que essas vozes sussurrem a verdade, a ingenuidade a respeito do predador impele a mulher mais jovem a acolhê-lo, querer curá-lo, afinal, a barba nem é tão azul assim.

Inevitavelmente encontramos a porta secreta do Barba-Azul, quando perdemos nossas esperanças, nossos instintos de sobrevivência, nossa criatividade, nossa voz, nossos lugares de fala. Quando somos forçadas a acreditar que somos incapazes, menores ou indefesas. A chave misteriosa é a que abre a porta dos segredos, escancara a falsa sensação de liberdade, é a que nos traz de volta à consciência, mesmo quando nossos instintos não estão tão aguçados.

Até o fato de a curiosidade feminina ser algo trivializado pela sociedade, nos mostra o quão profundo vão os tentáculos do Barba-Azul. A pergunta que devemos nos fazer é: o que vamos fazer depois que a porta estiver aberta?

Este é o ponto da transformação, do amadurecimento, pois os esqueletos escondidos pelo Barba-Azul não se referem exclusivamente aos corpos vitimados pelo feminicídio. São todas as mulheres que foram silenciadas, caladas, menosprezadas. Mulheres que tiveram seus salários reduzidos por serem mulheres, que perderam vagas de emprego por terem filhos, por serem consideradas emocionalmente instáveis por seus hormônios, por serem jovens demais, velhas demais, mulheres demais…

Este predador terrível se alimenta do poder existente na alma feminina, e quem de nós não conhece ao menos uma mulher que perdeu seus instintos, sua energia vital, forçada a viver em alienação e até situações piores? Talvez você seja essa mulher.

Não tenha medo de investigar, ir fundo, os esqueletos também nos revelam a força indestrutível do poder feminino, e podemos coletar esses ossos, trazendo-os de volta à vida. Quando tomamos consciência disso, podemos nos livrar das amarras do Barba-Azul. Sem estremecer, sem rastejar. Pedimos ajuda aos nossos “irmãos mais velhos”, que podem ser tanto uma presença física, como uma força interior, um guerreiro psíquico, o lado selvagem da psique, que trará de volta nosso potencial combativo e criativo.

E ao enfrentarmos o Barba-Azul, deixando apenas seus ossos aos abutres, simbolicamente, o entregamos aos processos da natureza de degeneração e renascimento. A sua força se vai, pois, ele não pode agir se não está se alimentando da força feminina.

Este Homem Sinistro, a figura do Barba-Azul pode aparecer a qualquer tempo de nossa existência, quer sejamos mulheres jovens ou maduras, quando nos sentimos acuadas, assustadas ou encurraladas, mas se acionamos nossa energia interior para combatê-lo, a Mulher Selvagem vem à tona, nos mostrando a importância da expressão de nossas almas, e colocamos o predador em seu devido lugar. E estamos em uma luta constante contra o Barba-Azul, portanto, agucemos nossos sentidos, e se preciso for, gritemos por reforço, pois nenhuma de nós precisa estar sozinha nessa batalha.

Referência:

Mulheres que Correm com Lobos

Clarissa Pinkola Estés

Abençoadas Sejam!

Mariana Leal

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1 Comentário

  • Leila Posted setembro 10, 2021 17:55

    ótimo texto! gratidão por compartilhar!

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