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Só, bem acompanhada

Só, bem acompanhada

Só, bem acompanhada

Que minha solidão me sirva de companhia. Que eu tenha a coragem de me enfrentar. Que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.

Clarice Lispector

Muito antigamente, lá nos tempos da filosofia de Platão, um texto chamado “O banquete” ¹ trazia, nas palavras de Aristófanes, um dos convidados do “evento” altamente etílico, uma teoria/mitologia interessante, a qual afirmava que, a princípio, existiam seres completos, feitos ambos de vagina e pênis, os andróginos, tão autossuficientes,“ de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham”, que despertaram a ira dos deuses, que, por conseguinte, resolveram cortá-los em dois, e desde então ambos vivem à procura de sua outra “metade”. Eis aí – o mito do amor romântico já era pauta de investigação em tempos muito remotos.

Tantos séculos se passaram e tal ideia ainda se constitui como verdade a muitas pessoas. A quem não acha sua “metade”, resta-lhe a solidão. E à mulher, foco deste texto, paira uma culpabilização e julgamento velados por uma demanda social não cumprida. Nada de novo no front. Desde Eva, a culpa sempre recai sobre a mulher. Através dos tempos, a solidão vem sendo encarada de modo distinto em cada período sócio-histórico. Já esteve presente, de maneira positiva, nos processos de conexão com o divino, ou de maneira punitiva nos processos de cárcere e tortura², e atualmente, diz-se ser um dos males da modernidade, marcada por individualismo e interações vazias. Seja autoimposta ou involuntária, a solidão, no senso comum, ainda é vista como digna de pena e fator de cobrança social.

“Automat” de Edward Hopper (1927) – Por Fonte, Conteúdo restrito, https://pt.wikipedia.org/w/index.php?curid=3195300

Voltemos à mulher: o período da menarca marca, culturalmente, a transição da menina para a mulher (resguardando aqui as leis que definem, sabiamente, o estado de vulnerável no direito penal). Desde então, a ex-menina é bombardeada por todos os lados para, assim como no banquete de Platão, buscar sua “metade”.

Não apenas, ela também precisa estar sempre bela, de acordo com os padrões estéticos em voga, ser “educada” (sinônimo para submissa), desejar o casamento, e então os filhos, e assim, cumprir o seu dito papel social a ela reservado, determinantes naturalizados que ainda persistem, apesar de estarmos reconhecidamente na 4ª onda feminista da história social.

Se a mulher é infeliz no casamento, se de fato quis ter os filhos que gerou, se escolheu de verdade seus caminhos ao longo da vida – ou foi moldando suas vontades para atender demandas que não as suas – a mesma sociedade que a cobrou tais cumprimentos para estar de acordo com o ideário social da mulher, decerto não estará presente para acolher essa mulher que agora é amargurada com sua sina pessoal.

E pior, muitas vezes, paradoxalmente, permanece solitária com muitas pessoas ao redor, em ordem de justificar o peso social da constituição familiar imposto pela sociedade (preciso escrever PATRIARCAL? Creio que não). Por outro lado, se esta mulher decide por bem permanecer solteira, e, pior, se virar bem com sua solidão, é certo que ela vai ser considerada por muitas pessoas como uma “freak”, a esquisita, ou em termos mais adaptados a nossos tempos internéticos, “a louca das plantas”, “a louca dos gatos”, e por aí afora. Já aos homens em igual condição, geralmente são ditos como “alma livre”, “garanhão” e outros tantos vernáculos – todos de cunho positivo.

Solidão não é sobre estar desacompanhado, isto é fato. Esse vazio dolorido que é também humano, foi e continuará sendo tema de pesquisas que a psicologia, entre outras ciências, certamente seguirão estudando, ainda mais quando a solidão dos tempos individualistas e de relações líquidas no qual vivemos parece apontar o aumento de depressão e suicídio. O impacto negativo da solidão sobre a saúde é real. O Reino Unido, inclusive, criou um “Ministério da solidão” em 20184, para auxiliar idosos carentes de interações sociais.

Somos seres coletivos. Propomos aqui um olhar adentro: você já sentiu a pontada fina que a solidão dá? À parte a cobrança social, você, mulher que entendeu o que é solitude, ou seja, aprender a gostar de sua própria companhia, e assim aprendeu a se virar consigo mesma, sai e viaja em sua própria companhia, paga suas próprias contas, troca resistência de chuveiro, botijão de gás, pneu, maneja furadeira de impacto (ou não), “dirijo meu carro, tomo meu pileque, e ainda tenho tempo pra cantar…” (saudosa Cássia!), você deve muitas vezes entender o que a solidão faz na gente.

Um troço agudo que as plantas, os gatos, os livros, o vinho, a Netflix, mesmo os amigos não dão conta de preencher. E às vezes dá até vontade de se render às ideias de metade propostas por Aristófanes, mas se não for pra ser companheirismo, menos pior deixar-se doer. Viver é escolha e sorte, e, óbvio, as leis do desejo, neste texto, enxergam todos os amores possíveis independente de orientação, gênero ou identificação sexual. É o cobertor de orelha, é a conversa solta, é o socorro quando a gente tá no chão, é o outro (ou outra, ou outre) na partilha dos dias, é o carnal para além da cama.

“Sol da manhã” de Edward Hopper (1952) – Fonte: http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/hopper/interior/hopper.morning-sun.jpg

Em adendos ainda mais pormenores, há solidões que a sociedade ignora: a solidão da mulher preta é uma delas. Ao contrário do que as vozes do “racismo reverso” (que não existe, alou), costumam pregar, nada tem a ver com a dificuldade em se achar uma companhia.

Herança da colonização, quando as mulheres escravizadas eram boas para encontros furtivos, ou seja, para o ato sexual, e, consequentemente, filhos renegados – uma pesquisa da Fiocruz³ acerca da ancestralidade genética dos brasileiros revela que a herança materna dos brasileiros é de 36% de nativas africanas (e 34% de nativas originárias) contra 75% por cento de genes europeus – fez a conta? Ou seja, essa herança dá conta de que, não só em nossa genética ancestral, mas ainda hoje, a mulher negra é muitas vezes a mulher ideal quando em quatro paredes, mas não é objeto de desejo que se exiba à família, aos amigos, em redes sociais, à vida, com o orgulho que um par merece, de mãos dadas no parque numa tarde de domingo.

E aqui, importante frisar que não é uma realidade reservada aos relacionamentos não oficializados. Muitas vezes, é a mulher-mãe-solo que resta com as responsabilidades da criação dos filhos, e noutras, casamentos que se regram também por esta régua, a da mulher “escondida” dos olhos sociais, que por não existir, não tem igual valor. 

Outra solidão menos mencionada é a da mulher idosa. Muitas delas, mães, que muitas vezes acreditaram no mito/confrontamento social “Como assim, não vai ter filhos? Vai morrer sozinha?” – e muitas delas, sim, morrem sozinhas, abandonadas. Algumas com muitos filhos, inclusive. Findam sendo consideradas “peso”, jogadas pra lá e pra cá entre a prole. Nos países ocidentais, que não possuem a tradição de devoção às pessoas de idade avançada, o cenário só piora. E toda uma vida, que muitas vezes foi de devoção aos filhos, se torna um pesadelo do não-cumprimento da promessa social de que filhos equivalem a cuidados garantidos no futuro. E o que fazer com a dor da não completude, mesmo entendendo que somos inteiras do jeito que somos? Não há lições prontas neste texto, amadas bruxas, o que propomos aqui é diálogo. O que há são caminhos possíveis: cultive-se, a princípio – e isso não tem a ver com enquadrar-se dentro de padrões, sejam eles estéticos e/ou comportamentais. Cultive paixões: quer seja a música, a arte, o artesanato, a escrita, a leitura, os estudos, as causas sociais e políticas, a espiritualidade, a cozinha, os clichês pets & plantas. Busque por coletivas fêmeas de acolhida e troca, e para quando doer, pavimente caminhos de cura, terapia, meditação, autocuidado, espiritualidade. Nem sempre dá certo. Mas só quem tenta sabe se vai dar…certo mesmo é que a gente sai sempre maior quando (se) enfrenta. Em frente. Sempre.

“No estoy sola, estoy conmigo.”  (Não estou sozinha, estou comigo)

Ana Tijoux

Michele Santos, colaboração: Juliana Félix
Coletivo Feminista Nísia Floresta

Referências:

(1)PLATÃO. “O banquete”. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000048.pdf

(2)STORR, Anthony. “Solidão: a conexão com o eu”. Ed. Benvirá.

(3)“Estudo com 1200 genomas mapeia diversidade da população brasileira” . Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2020/09/estudo-com-1200-genomas-mapeia-diversidade-da-populacao-brasileira.shtml?origin=folha

(4)“Reino Unido cria secretaria de Estado contra “epidemia” de solidão.” El País. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/17/internacional/1516217665_881811.html

Sugerido: GONÇALVES, ELIANE. “Nem só nem mal acompanhada: reinterpretando a “solidão” das “solteiras” na contemporaneidade”. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832009000200009

2 Comentários

  • Duci Mendes Posted novembro 24, 2020 09:10

    Obrigada! Me encaixei no texto…ou melhor, não me encaixo nos padrões.. gratidão.

    • Mariana Leal Posted dezembro 2, 2020 09:57

      Duci, esse texto é muito potente, e que bom que se sentiu representada!

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